QUEM SÃO OS FILHOS DE DEUS EM GÊNESIS 6? HOMENS OU ANJOS CAÍDOS?
A identidade dos “filhos de Deus” mencionados em Gênesis 6 tem sido motivo de intenso debate entre estudiosos, teólogos e rabinos ao longo dos séculos. Dois dos principais pontos de vista buscam explicar quem seriam eles:
- A Hipótese Angelológica, que identifica os filhos de Deus como anjos caídos; e
- A Hipótese da Linhagem de Sete, que os vê como descendentes piedosos de Sete, o filho de Adão.
Neste artigo, exploraremos detalhadamente essas duas interpretações, apresentando os argumentos mais relevantes de cada uma. Enquanto a primeira enfatiza uma união sobrenatural entre anjos e humanos, a segunda foca em um conflito espiritual entre linhagens piedosas e ímpias.
TEXTO BASE
Gênesis 6.1-2
“E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram.”
A HIPÓTESE ANGELOLÓGICA: ANJOS CAÍDOS
“Havia, naqueles dias, gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os varões de fama.” – Gênesis 6.4
Uma das teorias mais antigas sobre os “filhos de Deus” é que eles seriam anjos caídos que se uniram às “filhas dos homens”, resultando no nascimento de gigantes. A seguir, apresentamos os principais argumentos que sustentam essa visão.
1. Filhos de Deus Como Anjos em Outras Partes da Escritura
A Bíblia frequentemente utiliza o termo “filhos de Deus” para se referir a anjos, como em Jó 1.6, onde os filhos de Deus apresentam-se perante o Senhor e Satanás também vem entre eles. Essa terminologia faz com que muitos estudiosos também interpretem os “filhos de Deus” de Gênesis 6 como seres angelicais.
2. O Contraste Entre Filhos de Deus e Filhas dos Homens
O contraste no texto entre “filhos de Deus” e “filhas dos homens” sugere, segundo a hipótese apresentada, que houve uma relação antinatural entre anjos e seres humanos. Enquanto os filhos de Deus seriam seres angelicais, as filhas dos homens seriam humanas, destacando a natureza incomum dessa união.
3. Evidências nos Livros Apócrifos e Judaicos
Textos datados entre o II séc. a.C. e I d.C., como I e II Enoque e II Baruque, descrevem anjos caídos que se apaixonaram por mulheres humanas, uma narrativa que se refere a Gênesis 6. O historiador judeu Flávio Josefo também mencionou essa interpretação em suas Antiguidades Judaicas, indicando sua popularidade no judaísmo antigo.
4. Apoio no Novo Testamento
Algumas passagens do Novo Testamento são usadas para apoiar a hipótese de que anjos caídos pecaram nos dias de Noé:
- I Pedro 3.19-20: Declara que Cristo pregou aos espíritos em prisão que foram desobedientes nos dias de Noé.
- II Pedro 2.4-5: Afirma que Deus não poupou aos anjos que pecaram, mas os lançou em prisões de escuridão.
- Judas 6-7: Relata que certos anjos abandonaram seu lugar designado, sendo reservados em prisões até o dia do Juízo. Na visão dos seus defensores, o texto estaria comparando o pecado desses anjos ao de Sodoma e Gomorra, descrevendo ambos como uma busca por "outra carne".
Algumas versões bíblicas tornaram essa relação ainda mais explícita:
- Judas 6,7: “Assim como Sodoma e Gomorra [...] agiram como aqueles anjos e cometeram imoralidades e pecados sexuais” (NTLH).
- Judas 6,7: “Assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se prostituído como aqueles anjos, e ido após outra carne, foram postas como exemplo” (AA).
Segundo a interpretação angelológica, essas passagens conectam o pecado de anjos com o contexto de Gênesis 6. Porém, quanto a estes textos, há muita controvérsia no ambiente acadêmico e os estudiosos do texto grego discordam sobre qual seria a tradução correta.
Recomenda-se, portanto, muita cautela.
5. Gigantes Como Resultado da União Antinatural
Os gigantes, ou nefilins, de Gênesis 6.4 são vistos como a prole da união entre anjos caídos e mulheres humanas. Essa interpretação sugere que esses seres eram extraordinários em tamanho e força e, nesse sentido, Champlin comenta que “o casamento entre os filhos de Deus e as filhas dos homens produziu ‘homens valentes’, um termo usado para distinguir essa prole da prole comum, o que indica que havia algo de especial acerca deles”.¹
6. Pais da Igreja Apoiaram Essa Interpretação
Alguns dos chamados Pais da Igreja também defenderam essa ideia:
- Justino Mártir: Considerava os “filhos de Deus” como anjos que desobedeceram a Deus.
- Irineu de Lyon e Tertuliano: Sustentavam que a união entre anjos e humanos produziu gigantes.
- Jerônimo: Também adotava essa visão, alinhando-se com tradições judaicas.
A aceitação dessa interpretação por muitos judeus e cristãos demonstra sua relevância e força. No entanto, também há outra interpretação muito relevante para analisarmos a seguir.
A HIPÓTESE DA LINHAGEM DE SETE: HOMENS PIEDOSOS
Outra interpretação sugere que os “filhos de Deus” representam a linhagem piedosa de Sete, filho de Adão, enquanto as “filhas dos homens” seriam descendentes da linhagem ímpia de Caim. Abaixo estão os principais argumentos dessa hipótese.
1. Homens Também São Chamados de Filhos de Deus na Bíblia
A expressão “filhos de Deus” não se limita a seres angelicais. Em várias passagens bíblicas os humanos que servem a Deus também são chamados desta maneira:
- Deuteronômio 14.1: “Filhos sois do Senhor, vosso Deus.”
- Êxodo 4.22: Deus chama Israel de "meu filho primogênito."
- Oséias 1.10: Os israelitas seriam chamados de “filhos do Deus vivo.”
Essas referências mostram que, no contexto bíblico, "filhos de Deus" podem se referir tanto a anjos como àqueles humanos que buscam a Deus. Assim, em Gênesis 6, a expressão seria uma designação para a linhagem piedosa de Sete, em contraste com as “filhas dos homens”, da descendência ímpia de Caim.
2. Evidências nos Escritos Judaicos
Rabinos como Akiva e Shimeon Bar Yohai (séculos I e II d.C.) interpretaram os “filhos de Deus” como os descendentes de Sete. A tradição rabínica, nesse sentido, frequentemente associa a linhagem de Sete à busca por Deus, reforçando a ideia de que esses homens eram chamados de “filhos de Deus” por sua piedade e integridade.
3. Pais da Igreja e Reformadores Apoiaram essa Interpretação
Embora alguns pais da Igreja tenham apoiado a hipótese angelológica, outros apoiaram a hipótese da linhagem de Sete. Os principais reformadores também concordaram com essa interpretação:
- Crisóstomo e Agostinho: Interpretaram os “filhos de Deus” como sendo os descendentes de Sete.
- Martinho Lutero e João Calvino: Durante a Reforma Protestante, rejeitaram a visão angelológica e endossaram a hipótese da linhagem piedosa de Sete.
Assim, destacaram que a distinção entre as linhagens de Sete e Caim está no centro da narrativa de Gênesis, refletindo um tema de fidelidade e rebeldia para com Deus.
4. O Juízo de Deus Foca na Humanidade
Em Gênesis 6.3-7, Deus declara Seu julgamento sobre a humanidade, sem menção a anjos sendo punidos. Isso sugere que o problema apresentado no texto é de caráter humano, envolvendo o comportamento da raça humana, não de seres angelicais. Se anjos tivessem coabitado com mulheres humanas, seria esperado que o texto incluísse uma punição específica para esses anjos, mas ela não é apresentada.
5. Os Anjos São Assexuados
Jesus declarou que os anjos não se casam nem se dão em casamento (Mateus 22.30). Isso levanta sérias objeções à hipótese de que anjos poderiam ter se unido fisicamente a mulheres humanas. A visão da linhagem de Sete é mais consistente com o ensino de Jesus sobre a natureza angelical apresentada pelo Filho de Deus.
6. Os Gigantes Não São Filhos Diretos daquela União
O texto bíblico menciona a presença de gigantes (nefilins) antes e depois da união entre os “filhos de Deus” e as “filhas dos homens” (Gn 6.4). Isso indica que os gigantes não eram necessariamente fruto dessa união.
Além disso, após o dilúvio, gigantes como Golias e os anaquins ainda são mencionados na narrativa bíblica. Essa continuidade sugere que a presença de gigantes não depende de uma união sobrenatural entre anjos e humanas. Ninguém defende a ideia de que Golias fosse filho de algum anjo, por exemplo.
7. Toda a Humanidade Descende de Adão
A Bíblia afirma que Deus criou todas as nações a partir de um só homem, Adão (At 17.26). Se os “filhos de Deus” fossem anjos, isso criaria uma linhagem híbrida separada, contradizendo o ensino bíblico de que toda a humanidade compartilha a mesma origem.
CONCLUSÃO
A identidade dos “filhos de Deus” em Gênesis 6 continua a ser um mistério que fascina estudiosos e leitores da Bíblia. Tanto a hipótese angelológica quanto a da linhagem de Sete apresentam argumentos convincentes, cada uma oferecendo perspectivas diferentes sobre a narrativa.
Enquanto a primeira explora a interação entre o sobrenatural e o humano, a segunda enfatiza o conflito espiritual entre linhagens piedosas e ímpias. Ambas as interpretações enriquecem o entendimento teológico e convidam à reflexão sobre o texto. Qual delas melhor reflete a mensagem bíblica? Essa é uma questão que cada estudioso e leitor deve ponderar à luz das Escrituras.
Este autor, porém, prefere a Hipótese da Linhagem de Sete, pois entende que os textos de Atos e Mateus são claros, não havendo discussão sobre sua tradução. Assim, os textos controversos utilizados pela Hipótese Angelológica perdem força, pois sua correta tradução ainda é muito discutida.
Que bela interpretação muito esclarecedora.
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